Conselhos não bastam: A vida requer mais

Fotografia de Bruno Kelzer

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Transformações psicológicas profundas são aquelas que permanecem em nossa psique de maneira mais duradoura, não sendo facilmente abaladas por acontecimentos externos ou internos. Não são eternas (ainda bem!), podem ser modificadas, mas certamente são mais resistentes por estarem profundamente ligadas em nosso psiquismo individual e coletivo.

Se uma pessoa tomou consciência, por exemplo, de que frequentemente age de maneira violenta quando não consegue o que deseja, essa consciência certamente poderá ajudá-la a modificar essa atitude reativa. No entanto, ter consciência não necessariamente significa que ocorreu uma transformação interna profunda. A conscientização é o primeiro passo, mas há muito trabalho interno para que, um dia, a pessoa tenha se transformado psicologicamente a ponto de quase nem lembrar de ter tal atitude como parte do seu jeito de ser: “Eu era mesmo assim?, nossa …”.

Quando conseguimos perceber, a um só tempo, as diferentes versões de quem fomos no passado e a imagem de quem somos hoje, a ponto de identificamos algumas transformações que ocorreram, isso indica, no mínimo, que já existe uma consciência interessante acerca de si mesmo, capaz de realizar tais comparações.

Nessa difícil tarefa de se transformar, as pessoas utilizam constantemente a introjeção, mecanismo descrito pela psicanálise. Trata-se do processo ‘tornar parte do meu mundo interno’ determinadas formas de ser, de pensar, de sentir e de agir[1]. Uma pessoa que pensa “preciso cuidar melhor de mim” e faz esforço para modificar determinados comportamentos, está realizando um trabalho interno importante, entretanto, nem sempre o resultado será o esperado… Mesmo com esse reconhecível esforço ela poderá agir, muitas e muitas vezes, de maneira pouco cuidadosa.

Isso tem explicação[2].

O psicólogo Carl Gustav Jung, por exemplo, destacava o papel dos complexos na vida das pessoas; composto por um ‘núcleo’ de ideias e afetos inconscientes, os complexos, quando ativados, agem sobre o comportamento sem que a pessoa tenha, naquele momento, autocontrole. Não é difícil imaginar o quanto um complexo pode ser devastador. Pensemos, por exemplo, num complexo muito comum, o de inferioridade, que, se não for conscientemente elaborado pela pessoa, a acompanhará pelo resto de sua vida, manifestando-se das mais variadas maneiras: não se sentir capaz, evitar desafios, adotar atitudes contra si mesmo, etc.

Mas não é da noite para o dia que as transformações psicológicas profundas ocorrem. Aonde há ferida psíquica, há dor, há uma longa e difícil história a ser contada, recontada, contada de novo …

Dessa maneira, se as transformações não acontecem ‘de repente’, podemos concluir que os “conselhos” ou as “fórmulas de vida”, apesar de úteis, não dão conta dessas transformações, servindo mais ao propósito de ajudar o indivíduo a momentaneamente autorregular as próprias emoções e a refletir sobre a vida. “Seja você mesmo”, “Valorize-se”, “Cuide de quem você ama”, “Descubra novos horizontes”, dentre várias outras frases comuns, são bastante úteis se mencionados no momento certo, por se tratarem de conhecimentos válidos que podem trazer algum alívio e sensação de direcionamento para o indivíduo em desespero e em sofrimento, tornando-se matéria-prima de reflexão, mas são insuficientes para cicatrizar uma ferida psíquica ou um trauma, bem como insuficientes para descrever as complexidades do mundo psicológico de cada um de nós.

Um conselho, um ombro amigo, cai bem em diversos momentos da vida, e como cai, mas a complexidade do psiquismo vai além de fórmulas pré-definidas para todas as pessoas. Jung insistia na ideia de que cada indivíduo deve encontrar o seu caminho pessoal de vida, o que não significa ser distante do mundo, de outras pessoas que pensam diferente, de outras etnias. Encontrando o próprio caminho, o indivíduo, de acordo com Jung, torna-se menos adoecido psicologicamente e mais capaz de contribuir com mudanças coletivas e sociais, pois a parte da energia psíquica que se encontrava ‘presa’ no complexo ficará à disposição para ser utilizada de outras maneiras.

Portanto, temos que tomar cuidado. A vida não é um conto de fadas, em que basta um feitiço para que a realidade se transforme.  Propostas de soluções indolores ou rápidas nos seduzem principalmente pela promessa imediata de alívio que trazem. Certa vez, ouvi uma propaganda de que prometia curar a depressão em poucos dias. Desconheço literatura científica que comprove que a “cura” de uma depressão possa ocorrer em tão pouco tempo, mesmo que a pessoa esteja sendo cuidada pelo melhor profissional do mundo.

E o próprio conceito de “cura” necessita ser problematizado: o psicólogo sabe que, quem teve depressão uma vez, ou qualquer outra psicopatologia, poderá tê-la novamente, caso não cuide de si mesmo; e sabe que, mesmo quem nunca adoeceu em termos psicológicos, poderá vir a adoecer, por mais saudável que seja o contexto social e político em que a pessoa viva o seu dia a dia.

A vida é complexa. Se as pessoas se ajudassem mais, se a estrutura social e política fosse menos preocupada em acumular capital e mais baseada em valores de solidariedade e de respeito, acredito que teríamos muito menos sofrimento, menos complexos, menos neuroses. Entretanto, penso que ainda assim cada pessoa teria diante de si um ‘baita’ trabalho, o de ‘fazer a si mesma’ diante desse complexo mundão, não no sentido de se tornar uma pessoa “acabada” – será que ‘tornar-se acabado’ é possível? -, mas no sentido de se tornar uma pessoa cada vez mais consciente de si mesma e do mundo em que vive.


[1] Para uma explicação mais detalhada e aprofundada, ver os textos da psicanálise a respeito da introjeção.

[2] A psicologia sabe bem que modificações profundas não são simples ou fáceis, e reuniu um grande acervo de conhecimento a esse respeito, que permanece em constante elaboração e revisão.

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Psicólogo (CRP 20/4130)

pela Universidade Federal de Rondônia

Mestre em Psicologia

pela mesma universidade

Em curso de formação de analista junguiano

pela SBPA Brasil

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