O Herói em Nós

Fotografia por Frida Bredesen.

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No livro O Poder do Mito, ao ser questionado pelo entrevistador Moyers acerca da razão de existirem milhares de histórias de heróis na mitologia, Campbell (1990, p. 37) responde: “Porque é sobre isso que vale a pena escrever.” Quando Jung evidenciou o mito do herói e o inseriu no âmbito da Psicologia, acredito que ele nos deu um presente.

Não é novidade, na psicologia junguiana, o tema ou mitologema do herói. Servindo-se especialmente da mitologia grega, mas não deixando de compará-la com outras, Jung tantas vezes se referiu à imagem do herói, ao ponto de elevá-lo ao status de estrutura básica e universal da psique, ou seja, um arquétipo.

Os arquétipos não são “idéias inatas, mas […] caminhos virtuais herdados”, ou seja, são predisposições e, portanto, podem ou não serem ativadas na história de vida de cada pessoa (JUNG, 1982, p. 13, § 219).  No caso do arquétipo do herói, caracteriza-se como um caminho psicológico virtual que, se ativado na consciência ao longo da vida, produz movimentação psíquica voltada fundamentalmente para aspectos como força, vitalidade, coragem, transgressão e enfrentamento. Ao lugar psíquico onde os arquétipos se encontram abrigados, Jung (1982) designou de inconsciente coletivo, uma parte da psique formada ao longo de nosso processo evolutivo enquanto espécie humana.

Referindo-se à função do arquétipo do Herói, Alvarenga (2009, p. 18) explica que “Não há como seguir um processo de individuação sem a emergência do herói, […] pelo fato de que individuar implicará transgredir e ninguém transgride se não tiver o herói ativado. Quem aceita o desafio de tornar-se ímpar precisa transgredir”. Para a Psicologia Junguiana, se “individuar”, “torna-se ímpar”, significa a vivência do que Jung (1977) definiu como individuação, árduo processo psicológico por meio do qual nos tornamos aquilo que, de fato, realmente somos.

Na individuação, o que mais importa é o conhecimento profundo da própria psique, o contato com o inconsciente que é criativo, movimento que faz brotar uma vida com mais sentido, mais possibilidades, mais profundidade. Para Jung, sem dúvida somos seres coletivos, arquetípicos, no entanto, existe um certo tipo de sentimento de vazio e de angústia que é produzido e toma conta da vida quando falta identidade, falta singularidade. O que o herói busca, afinal, depois de atravessar difíceis mares, completar difíceis tarefas? De acordo com Alvarenga (2009, p. 14), “a busca do conhecimento de si mesmo é anseio de todo ser humano e o herói mítico é a melhor expressão do buscar-se”.

Referindo-se ao arquétipo do herói, Gimenez (2009, p. 73) esclarece que ele não é ativado somente na vida adulta, longe disso: “Para Neumann, no desenvolvimento do indivíduo, a faixa etária em que o arquétipo do herói se constela varia muito. Ocorre na infância, na puberdade e na segunda metade da vida. Melhor: podemos dizer que o arquétipo do herói é ativado sempre que houver necessidade de um renascimento ou uma reorientação psíquica”.

Partindo destas considerações, é possível compreender que o herói, enquanto dinamismo da psique, não deve ser reduzido a simples energia motivacional necessária para que as transformações aconteçam na vida. Por duas razões. Primeira, por se tratar de uma imagem mitológica, o que significa compreendê-la como tendo, em si mesma, um valor simbólico coletivo, pois sua estrutura básica foi talhada pela humanidade inteira e não por um único homem. E em segundo lugar, porque a funcionalidade deste arquétipo abarca diversos processos e momentos de transformação individual que se tornaram universais em nosso modo de produzir a existência: a passagem pelas fases do desenvolvimento, a realização do projeto de vida, a descoberta e a concretização de potencialidades, a mudança na concepção de mundo, por exemplo. O modo como cada um realiza esse movimento heroico é que seria único, vinculado à diversidade dos processos sociais e culturais.

Assim, o herói tem mil faces como escreve Campbell (1999), uma vez que incorpora as particularidades de cada cultura e tempo histórico, porém, não importa a geografia ou a temporalidade, de qualquer um dos quatro cantos do mundo cada pessoa é potencialmente capaz de ativar esse arquétipo. E definitivamente o ativamos, tantas e tantas vezes que se torna difícil realizar algum tipo de estatística, pois consciente ou inconscientemente estamos trabalhando essa imagem de inúmeras formas, seja no cotidiano ou em espaços especificamente destinados à iniciação do herói, tal como acontece, por exemplo, na psicoterapia. Quem inicia um processo psicoterapêutico precisa lidar constantemente com a ativação desse arquétipo.

O presente de Jung foi, então, evidenciar que o herói está potencialmente contido em cada um de nós como inconsciente coletivo, e que a natureza de seu funcionamento é espelhar as possibilidades de transformação da psique. Assistir a momentos de transformação da psique, assistir ao herói sendo ativado em alguém que está saindo da adolescência para se tornar adulto ou buscando condições mais dignas de vida, dentre várias outras possibilidades de manifestação do herói, evoca em mim uma sensação de encantamento. Talvez a sedução do herói consista nisso, em mobilizar forças arquetípicas estrondosas de morte-renascimento, e justamente por esse caráter transformador não me canso de relembrá-lo tantas vezes, sempre que possível.

Nem sempre a sedução do herói é sombria, nem sempre é uma armadilha de um ego vaidoso ou desejoso de poder como a literatura e o cinema fartamente representa. O Herói Beowulf (MAGALHÂES, 2008), do mais antigo poema épico inglês, acaba sucumbindo ao desejo de se tornar rei meramente pelo poder e, profundamente arrependido, perde a sua vitalidade e vontade de viver. A sedução criativa do herói é aquela que concorre para o processo de individuação.

Também podemos compreender o herói criativo como aquele que estabelece amizade com Eros. Enquanto amor possui um significado mais restrito, o Eros detém maior complexidade, pois se refere ao “estado de possessão divina ou daimon que aparece inesperadamente, com a velocidade de uma flecha, em qualquer momento da vida e com uma força tal que transpassa qualquer barreira que se lhe coloque. […] eros aparece em oposição excludente ao poder, e acredito que é assim porque, quando aparece o poder, com sua carência de formas, nada vai se constelar nem na vida nem na psicoterapia” (PEDRAZA, 2010, p. 62). Se o Herói está com Eros, ele está mais protegido da perigosa ambição por poder e, portanto, com mais chances de agir e pensar de modo criativo.

Outro aspecto importante, na Psicologia Junguiana, consiste na idéia de que o herói necessita morrer simbolicamente, pois ninguém aguentaria suportá-lo ativado o tempo inteiro. Hillman (1989) chamou de maníaca a qualidade da psique que não dá espaço para a reflexão, para a tristeza, porque presa está na necessidade repetitiva de produzir, fazer, movimentar. No movimento depressivo, a psique é capaz de olhar para si mesma num ritmo mais ‘lento’ e, por isso mesmo, rico nas possibilidades de tomada de consciência. É comum observamos o herói na literatura e no cinema sendo apresentado em momento de crise, esse movimento depressivo que prepara o terreno para a amplificação do autoconhecimento.

No entanto, me interessa neste momento o herói ‘vivo’, por assim dizer, o que ele é capaz de realizar quando está respirando (ativado), quando está atuando em plena crise ou após ter passado por ela e renascido. Nesta perspectiva, o mais importante talvez seja não reprimi-lo, mas permitir que se expresse em sua criatividade; não desprezá-lo, mas olhar com um cuidado genuíno e prenhe de alegria, tal como os pais diante da criança que está aprendendo a andar pela primeira vez. Quantas vezes encontramos pessoas que estão em momento de busca por um novo contato arquetípico com o herói, perdidas, sem saber exatamente como conseguir, e tampouco se será possível ser tomado por essa arquétipo outra vez?

Acho muito interessante observar o herói sendo ativado em alguém próximo, pois o conhecimento que temos daquela pessoa torna possível entender melhor o que significa a emergência do herói naquele momento de sua vida. Arquetipicamente, somos potencialmente capazes de reconhecer a manifestação psíquica do herói nos outros e em nós mesmos, seja pela via do pensamento, da sensação, do sentimento e/ou da intuição.

Infelizmente, o poder localizado nas mãos de uma minoria mais privilegiada economicamente e nem sempre à favor do coletivo, a repressão, a falta de alteridade nas relações, empobrece a capacidade de legitimar o arquétipo do herói quando se manifesta individual ou coletivamente – ou assinala o desejo de se expressar. Para Byington (2008), a alteridade é uma forma de relação dialética, democrática e criativa entre as polaridades, propicia oportunidades igualitárias para que as diferenças de cada extremo da polaridade (herói-vilão, homem-mulher, criança-adulto etc.) se expressem e se desenvolvam. Ao contrário, a relação patriarcal privilegia um pólo da relação em detrimento de outro, é rígido e impositivo, preza pelo cumprimento do dever e age de forma racional, embora quando não excessivo desempenhe papel importante de organização do coletivo. A alteridade não massifica ou reprime de modo autoritário, ela agrega as singularidades.

A falta de alteridade (sinônimo de opressão) pode deixar o herói raivoso e o impulsionar à transgredir o imposto, porém, muitas vezes também paralisa sua pujança criativa. A Psicologia Social e Psicologia Institucional demonstram as contradições sociais do mundo capitalista e as contradições das instituições: exigem criatividade, iniciativa, capacidade de transformar o que está posto, de lutar contra o patriarcado rígido (características de um herói criativo) e, contraditoriamente, ao mesmo tempo engendram mecanismos de resistência, muitas vezes inconscientes e, por isso, sutis.

A quem mais, senão à cultura e à sociedade (formada por pessoas), caberia a legitimação do herói? Nascemos em meio a outros homens. Então, seria papel da cultura possibilitar a emergência do herói individual e, não menos importante, propiciar condições concretas (educação escolar, recursos materiais, algum outro tipo de apoio efetivo, etc.) para que cada um desenvolva em si recursos psicológicos capazes de conter a grande energia desse arquétipo e concretizá-la em processos, ações. Às vezes, contribuir para a ativação do herói de alguém e não acompanhar este processo é o mesmo que abandonar.

O Herói possibilita transgredir os limites de nós mesmos e os limites histórico-culturais das sociedades. O Herói criativo se move para frente, no sentido da transformação. Que sejamos, então, cada vez mais capazes de despertar, uns nos outros, o herói criativo que habita à espera de oportunidades férteis para se objetivar no mundo, com a consciência de que trazer o herói à tona significa possibilitar a construção de vidas e realidades, tanto individual como coletivamente. A transformação individual, para Alvarenga (1997, p. 76), é pressuposto para uma atuação melhor no coletivo: “Os cavaleiros da Távola Redonda buscaram o Graal como todos nós o buscamos até hoje, pelo exercício das nossas atividades através de um caminho pessoal e individual. Quanto mais individual for, por mais paradoxal que possa parecer, mais competência trará para estarmos e sermos no coletivo.”

Caberia então à Psicologia, em diálogo com outras áreas do conhecimento, a difícil tarefa de compreender a dinâmica deste arquétipo em cada etapa do desenvolvimento humano, as diferentes possibilidades de sua manifestação (não esquecendo das semelhanças) e suas relações com os aspectos histórico-culturais, a ‘psicopatologia do herói’, dentre outros focos de análise.

Referências

ALVARENGA, M. Z. Édipo: um herói sem proteção divida: a saga dos labdácidas. São Paulo: Caso do Psicólogo, 2009. p. 18.

ALVARENGA, M. Z. O Graal: Arthur e seus Cavaleiros. Goiânia: Dimensão, 1997.

BYINGTON, C. A. B. Psicologia Simbólica Junguiana: A viagem de humanização do cosmos em busca da iluminação. São Paulo: Linear B, 2008.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces5. ed. São Paulo: Pensamento, 1999.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. Entrevista com Bill Moyers. Org. por Betty Sue Flowers. Tradução de Carlos Felipe Moisés.

GIMENEZ, Patrícia Dias. Adolescência e Escolha: um espaço ritual para a escolha profissional através do sandplay e dos sonhos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.

HILLMAN, James. Entre vistas: conversas com Laura Pozzo sobre psicoterapia, biografia, amor, alma, sonhos, imaginação e o estado da cultura. São Paulo: Summus, 1989. Tradução de Lúcia Rosenberg e Gustavo Barcellos.

JUNG, Carl Gustav. (Org.). O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. 3 ed. v VII/2, Petrópolis-RJ: Vozes, 1982.

MAGALHÂES, L. D. Beowulf, a Épica Anglo-Saxã e o Tema do Cantor.  Língua, Literatura e Ensino, v. 3, p. 289 – 299, Maio/2008.

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Psicólogo (CRP 20/4130)

pela Universidade Federal de Rondônia

Mestre em Psicologia

pela mesma universidade

Em curso de formação de analista junguiano

pela SBPA Brasil

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