Às vezes, certos acontecimentos da vida, como acidentes, mortes, doenças e separações, devido à forte carga emocional e psíquica que carregam, forçam a pessoa a realizar um “mergulho” mais profundo em seu mundo interior, a fim de encontrar e desenvolver recursos para lidar eficazmente com essas experiências. É como se a “porta” que dá acesso às dimensões mais profundas da psique estivesse sendo aberta à força por violentas e dolorosas emoções, ou seja, mesmo que a pessoa não queira mergulhar um pouco mais nas profundezas de si mesma ela se vê quase obrigada à realizar tal tarefa, talvez pela primeira vez na vida.
Entretanto, tais acontecimentos marcantes e geralmente difíceis não representam as únicas vias de acesso à interioridade. Não precisamos esperar alguma grande surpresa da vida, agradável ou desagradável, para descer até a profundidade das dimensões interiores que nos constituem. Podemos “abrir as portas” a qualquer momento e olhar, com cuidado, para o complexo mundo interior do qual fazemos parte e está indissociavelmente ligado ao mundo exterior em seus aspectos históricos, sociais, políticos e econômicos.
Mas ao “abrir tais portas”, há uma outra pergunta importante a ser respondida: por quanto tempo permanecerei ‘do outro lado’? Pode ser uma breve visitinha, quase o equivalente a uma olhada pela fechadura; mas há outra possibilidade bem mais benéfica em termos de saúde mental e de autoconhecimento, que é fazer esforço de permanecer o maior tempo possível nas regiões desconhecidas que acessamos ao fazer a travessia para esse ‘outro lado’. Jung compreendia bem o quanto a travessia é difícil, pois podemos – e vamos – encontrar elementos incômodos e angustiantes presentes na camada inconsciente e sombria da psique, o que poderá fazer o indivíduo desistir da tarefa. No entanto, mesmo que a escolha seja apenas por ‘olhar pela fechadura’, ele já foi afetado por essa outra dimensão psíquica em algum grau, percebendo a si mesmo de outra maneira.
É um ato realmente de coragem, tanto o de olhar pela fechadura como o de abrir a porta, de visitar os cômodos da casa e de permanecer neles por um bom tempo. Mas é em meio aos complexos (no sentido junguiano do termo) e outros elementos difíceis da psique que se encontram grandes potencialidades e possibilidades, desde que sejam reconhecidos e elaborados, e é por isso que o preço da travessia vale a pena ser pago – retornamos dela mais fortes e mais sábios. Grandes analistas, como Freud e Jung, apesar de algumas diferenças teórico-metodológicas, reconheciam como primordial para o processo analítico o trabalho com aquelas emoções, ideias e impulsos que causam dor, vergonha, angústia, culpa e/ou pavor no paciente, os quais podem ser fonte de sofrimento e paralisação ou, se trabalhados adequadamente, de criação e de crescimento. E da parte do paciente, trabalhar adequadamente exige também que ele resista às tentações de fugir da dor ou do medo provocado pela experiência de mergulhar no desconhecido.
Mas o que é preciso para que a coragem se imponha perante a amedrontadora tarefa de realizar esse mergulho? Entendo que duas condições são básicas, e não que elas sejam fáceis: permitir-se olhar para si mesmo (ou ir ao encontro de si) e permitir-se ser olhado (ou deixar que o outro venha ao nosso encontro).
Permitir-se olhar para si ou ir ao encontro de si: sem pressa, observar as arestas, a pintura desgastada, os anseios e os desejos esquecidos, as sensações, os sentimentos, as ideias, onde e como dói, o que assusta … partir em direção a si mesmo, em uma viagem com muitos caminhos possíveis. Até mesmo quando a vida tenta ‘escancarar a porta’ com seus grandes acontecimentos surpreendentes é importante que a pessoa internamente se abra para essa experiência de ampliação de consciência desencadeada por fortes emoções, caso contrário, estará resistindo à um processo psíquico que já está acontecendo independente de sua vontade consciente. Como consequência, as emoções e pensamentos tentarão novamente abrir a porta à força, mas desta vez com mais e mais pressão, com mais e mais angústia. Melhor é ‘abrir a porta uma vez’ e acolher o que está por trás dela, afinal, não podemos ignorar ou fechar os olhos para o que tenta entrar em nossa casa, principalmente quando de maneira insistente. Além disso, resistir significa ‘dar brecha’ para o desenvolvimento de psicopatologias como depressão, transtornos de ansiedade e manifestações psicossomáticas.
Assim, dando atenção dedicada à própria interioridade, podemos entrar em contato com essa dimensão interior, o que também é uma forma de cultivá-la, de ampliar a consciência e de elaborar processos de transformação. Mas mergulhar solitariamente na própria interioridade é apenas parte do processo, pois o olhar, quando individual, restringe-se aos nossos próprios parâmetros e estruturas internas. Vamos então à uma outra condição importante: permitir-se ser olhado ou permitir que o outro seja o nosso ‘espelho’.
A metáfora do espelho é bastante usada pela psicologia para se referir à tomada de consciência que ocorre a partir da relação que estabelecemos com as outras pessoas, as quais, independentemente de estarem “certas” ou “erradas” em suas ações e opiniões, nos tira da comodidade e de nossos limites auto impostos. O olhar do outro sobre mim, suas ponderações e reações, que exatamente por nascerem do não-eu lançam grande luz sobre quem realmente sou, sobre quem posso vir – a – ser, as minhas fraquezas, potencialidades, características, complexos, feridas … Para Carl Gustav Jung, somente nos tornamos quem realmente somos (processo de individuação) na relação com as outras pessoas, ao mesmo tempo tão diferente e semelhante de nós. Nesse sentido, Jung traça um paralelo com a química, dizendo que o encontro entre duas personalidades é semelhante ao encontro de substâncias químicas: se surge alguma reação, ambas se transformam.
A Psicologia desenvolveu um modo muito particular (não o único) de cultivo da interioridade, no qual o permitir-se olhar a si mesmo e se permitir ser olhado são fundamentais: a Psicoterapia.
Particular porque a relação que ali se estabelece entre cliente e terapeuta não é de amizade no sentido comum do termo, e tampouco se restringe a momentos – apesar de importantes – de catarse emocional. No espaço psicoterapêutico, cliente e terapeuta se unem em um mesmo propósito: trabalharão à serviço das necessidades de transformação psíquica do cliente. O olhar do terapeuta vai ajudando este último a tecer fios de consciência na medida em que “toca” em partes sensíveis e complexas de sua psique e, ao fazer isso, as feridas que doem, as emoções e as sementes de potencialidades encontram um novo terreno para serem elaboradas rumo ao desenvolvimento psíquico.
Enquanto o massagista e o massoterapeuta ‘tocam’ concretamente o corpo para trabalhá-lo terapeuticamente, o psicoterapeuta, por sua vez, “toca” a história e a imaginação do paciente, suas dores, feridas, emoções e ideias, o que também possui um efeito sobre o corpo. O psicoterapeuta trabalha com “mãos de artesão”, ao mesmo tempo sistemático e delicado porque sabe que a obra, o trabalho final, depende de uma atenção dedicada ao processo. Penso que a agitação, a euforia, a pressa, não combinam com o trabalho psicoterapêutico, nem para o paciente e nem para o terapeuta; nossas mãos não são precisas quando guiadas pela afobação e agitação.
Outro aspecto importante da psicoterapia, destacada por inúmeros psicólogos, refere-se ao fato de ser um espaço protegido e seguro, ou seja, o que for dito e expresso nesse espaço deverá permanecer nele, e aqui entra sobretudo a ética do psicólogo, o seu cuidado com a psique e o aspecto da liberdade psicológica.
Liberdade: o espaço psicoterapêutico deve ser livre – um espaço que permita ao paciente falar de si e do mundo sem se sentir limitado ou julgado de alguma maneira.
Nesse sentido, é importante perceber que pensar e sentir não é sinônimo de concretizar os pensamentos e os sentimentos em ações. Muitas pessoas parecem reprimir o próprio pensamento e emoções como se reconhecer a existência de determinado sentimento significasse ser dominado ou reduzido à ele, “mas eu sou marido dela, não posso pensar isso”, “credo, não acredito que pensei nisso, sou uma pessoa muito boa”, “ela é a pessoa que eu mais amo, não quero nem imaginar o que aconteceria se eu conversasse com ela sobre esse assunto”.
Freud e Jung reconheciam bem esse fenômeno: o compreensível medo do desconhecido ou do inconsciente. É claro que existem limites que precisam ser respeitados. Uma pessoa que imagina agredir o seu cônjuge não deve chegar a vias de fato. A liberdade se refere aqui a outro âmbito, o da imaginação: permitir-se olhar para as imagens que surgem em nossa consciência, mesmo aquelas mais aterrorizantes ou ‘feias’, prestando atenção em seus detalhes, nas múltiplas associações e sensações que ela provoca. O que essa imagem ‘agredir o cônjuge’ quer mostrar, dizer para a pessoa que a imaginou? Que relações posso estabelecer dessa imagem com a minha vida? Isso era parte fundamental do método analítico de Jung, que colocava a imaginação no centro de sua psicologia; não vamos deixar ‘para lá’, deixar jogada à própria sorte, a emoção, a imagem, a ideia que surgiu, pois ela vai voltar mesmo que conscientemente façamos o esforço de serem expurgadas da consciência; se, ao contrário, permitimos que a imaginação entre em cena, olhando para os múltiplos ângulos da questão, uma solução mais criativa poderá emergir.
Abaixo, três crônicas breves que retratam três momentos importantes (existem muitos outros) de uma psicoterapia, inspirados em minha prática clínica e em outras vivências no campo da psicologia: a CORAGEM, virtude necessária para adentrar e permanecer no desconhecido espaço de uma psicoterapia, no qual ocorrem momentos de ATRITO CRIATIVO e, como resultado dessa constante combustão interna, a consciência se amplia e processos internos de transformação ocontecem, tal como o momento em que o sujeito percebe que relacionava com determinados fatos e questões pelo conhecido mecanismo da NEGAÇÃO.
CORAGEM
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso ser quem eu sou.
‘Mantra’ da coragem para buscar ajuda.
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso ser quem sou.
Que medo é esse?
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso ser quem sou.
Será que é o meu orgulho, que me deixa encapsulada em mim mesma?
Preciso ser quem sou.
Preciso ser quem sou.
Fui acostumando a viver tão sozinha que se torna difícil partilhar minha vida com um terapeuta?
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso de um Psicoterapeuta.
Preciso ser quem sou.
Sinto vergonha com a ideia de buscar um terapeuta?
Aiii, que demora!
Cansei!
-Olá, bom dia. Aqui é a Joana, gostaria de marcar um horário.
ATRITO CRIATIVO
Na psicoterapia, o melhor não é ter alguém para escutar séria e atentamente minhas questões
A possibilidade de entrar em combustão, esse é o ouro de uma terapia
De queimar, arder, o fogo vai fazendo o seu trabalho de atrito, atrito, atrito, calor, calor, calor, dor, dor, dor
Cada sessão uma combustão, algumas mais brandas, outras mais intensas, todas, entretanto, uma combustão, consciência que lenta e dolorosamente nasce do atrito interior
“O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera.” Carl Gustav Jung.
NEGAÇÃO
É por ficar negando as minhas emoções
Que virou essa merda