Entrar em contato com a dor é difícil, porém, necessário. Sem esse contato, a ‘cura’ das feridas psíquicas não é possível, conforme tem sido demonstrado pela psicologia em diferentes estudos, teorias e experiência prática.
O que significa entrar em contato com a dor?
Em primeiro lugar, significa fazer um esforço consciente para reconhecê-la, percebê-la. Justamente por serem muito doloridas, frequentemente as feridas são desconhecidas pela própria pessoa que as possui ou, então, são pouco conscientes.
Em segundo lugar, significa ‘olhar’ para a ferida, aproximando-se dela, compreendendo seus contornos, seu funcionamento, suas características. e lidando com ela internamente. Isso é o que chamamos de ‘elaboração psíquica’. As feridas possuem certas semelhanças coletivas, entretanto, elas adquirem significados e expressões muito individuais.
Lendo “A Natureza da Psique“, livro do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, deparei-me com um trecho que me chamou muito a atenção. Jung relata o caso de um paciente seu que apresentava sintomas físicos que não tinham sido causados por problemas fisiológicos ou orgânicos:
“Trata-se de um oficial, de 27 anos de idade Ele sofria de violentos ataques de dores na região do coração, como se dentro houvesse um bolo, e de dores penetrantes no calcanhar esquerdo. Organicamente não se descobriu nada. Os ataques haviam começado cerca de dois meses antes e o paciente fora licenciado do serviço militar, em vista de sua incapacidade temporária para andar. Várias estações de cura de nada adiantaram. Uma investigação acurada sobre o passado de sua doença não me proporcionou nenhum ponto de referência, e o próprio paciente não tinha a mínima idéia do que poderia ser a causa de seu mal. Ele me dava a impressão de ser um tipo saudável, um tanto leviano e teatralmente meio “valentão”, como se quisesse,dizer: “Nesta ninguém me apanha”. Como a anamnese nada revelasse, eu lhe fiz perguntas a respeito de seus sonhos. Imediatamente tornou-se evidente a causa de seus males. Pouco antes da neurose se manifestar, a moça que ele namorava rompeu com ele e noivara com outro. Ele me contou essa história, considerando-a sem importância — “uma mulher estúpida: se ela não me quer, eu arranjo outra — um homem como eu não se deixa abater por uma coisa destas”. Esta era a maneira pela qual ele tratava sua decepção e sua verdadeira dor. Mas agora seus afetos vêm à tona. E a dor do coração desaparece e o bolo que ele sentia na garganta desaparece depois de alguns dias de lágrimas. A “dor no coração” é uma expressão poética que aqui se tornou realidade, porque o orgulho de meu paciente não lhe permitia que ele sofresse sua dor como sendo uma dor da alma. O bolo que ele sentia na garganta, o chamado globus hystericus, provém, como todos sabemos, de lágrimas engolidas. Sua consciência simplesmente se retirou dos conteúdos que lhe eram penosos, e estes, entregues a si mesmos, só podiam alcançar a consciência indiretamente sob a forma de sintomas. Trata-se de processos inteiramente compreensíveis por via racional e, conseqüentemente, de evidência imediata, os quais — se não tivesse sido o seu orgulho — poderiam igualmente transcorrer no plano da consciência.”
No texto acima, observa-se claramente que os sintomas físicos (dor no coração e calcanhar) tinham origem em questões psicológicas do paciente.
Mas o que gostaria de destacar é que o orgulho do paciente dificultou, em um primeiro momento, o seu processo de cura, ou seja, o processo de entender e lidar com o que estava por trás de seus sintomas.
O que é orgulho? No dicionário de língua portuguesa, essa palavra é definida como “Manifestação do alto apreço ou conceito em que alguém se tem”, “Soberba […].” (https://dicionario.priberam.org/orgulho).
A soberba, o querer sempre ser forte e inabalável, a busca exagerada por manter uma imagem de constante autossuficiência, quase como se estivesse escondendo de si mesmo as próprias dificuldades e fraquezas, pode produzir consequências desastrosas, dentre elas a consequência de impedir o processo de cura de feridas psíquicas.
Esse texto de Jung é um presente. Mostra do desafio que é lidar com as feridas emocionais e, ao mesmo tempo, traz um tema que parece ser pouco discutido: as consequências do orgulho excessivo no processo de autoconhecimento e de cura.