Viver, Viver, e saber para aonde ir

Fotografia por Raymond Pang.

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Alguns dirão que viver é simples, que é o ser humano quem complica demais. Outros dirão que viver é muito complexo, ou que a vida é uma espécie de jogo, em que se lida constantemente com riscos e, por isso, ter estratégia é fundamental.

Há muitas definições para o que é a vida e como ela deve ser vivida. Cada pessoa tem, mesmo que não tenha pensado a respeito, uma maneira própria de lidar com as questões existenciais.

Apesar das inumeráveis formas de ser e de existir no mundo, uma coisa parece certa: viver não é lá tão simples, não é mesmo?

A analista junguiana Von Franz (1977, p. 176), no clássico livro “O Homem e seus Símbolos”[1], traz algumas considerações interessantes para pensar essa questão:

“Em algum lugar, lá no mais profundo de nós mesmos, em geral sabemos aonde ir e o que fazer. Mas há ocasiões em que o palhaço a eu chamamos “eu” age de modo tão irrefletido que a voz interior não se consegue deixar ouvir.”

Von Franz está dizendo que, no fundo, cada pessoa sabe “aonde ir e o que fazer”. É claro que nem sempre isso acontece, dificilmente alguém não se sente ‘perdido’ pelo menos uma vez na vida, mas quando Von Franz afirma isso, ela está querendo chamar a atenção, em meu entendimento, para a dificuldade que o ser humano tem, em determinados momentos, de se conectar consigo mesmo de modo profundo – e não superficialmente.

E essa dificuldade tem a ver com o fato – mas não apenas – de que o homem moderno, mais do que os seus antepassados, dá muito valor ao ‘Eu’, ao que está consciente, ao que já sabe … É por isso que Von Franz afirma que o ‘Eu’ age, às vezes, como um palhaço: o ser humano tem uma grande facilidade para enganar a si mesmo, ‘brincando com a própria vida’ e praticamente a reduzindo ao próprio ‘Eu’, que passa, então, a ser o centro das atenções, ao invés de tentar “ouvir” a nossa ‘interioridade’ de forma mais ampla e profunda, em uma atitude constante de busca, de curiosidade, de aprendizado.

Mas o que é ‘ouvir a interioridade’ de maneira ampla e profunda? Por exemplo: eu estou escrevendo agora esse texto. Tenho consciência disso, assim como estou consciente da temperatura da sala. Se eu olhar com mais atenção, perceberei que o ritmo do meu batimento cardíaco acelera em determinadas partes do texto. Também consigo concluir que estou bastante focado na escrita, e que é algo que me causa prazer, pois facilmente passo horas escrevendo e isso me despertas diversas sensações agradáveis.

Ou seja, há muita coisa acontecendo, interna e externamente, que vai além do que está sendo percebido pela consciência em determinado momento. Só quando nos propomos a ‘ouvir’, novas informações são reconhecidas. E ainda é possível ir muito além: posso pensar sobre a importância da escrita em minha vida, sobre o que mais ela provoca em mim afetivamente; posso comparar as emoções sentidas na escrita deste texto com o que senti escrevendo outros; posso, ainda, tentar analisar as associações psíquicas que faço à medida em que escrevo, pois talvez venha, por exemplo, uma memória de infância, um acontecimento recente, etc. Só que, para isso, é preciso colocar o próprio ‘Eu’ meio de lado, porque ele não sabe tudo, não conhece tudo; ele é apenas uma parte do nosso complexo mundo psicológico.

É claro que sair da superficialidade não é fácil. E sozinho a gente só consegue fazer isso em parte. Se eu perguntar a visão de outras pessoas sobre algum comportamento meu, terei ainda mais amplitude e profundidade de entendimento, pois a visão que temos sobre nós sempre é limitada. É também por isso que as relações são tão importantes: por meio delas, crescemos.

É relativamente comum o sentimento, nas pessoas, de que elas apenas iam vivendo a vida, sem pensar a respeito dela, sem reconhecer como se sentem e o que desejam. Quem faz psicoterapia geralmente acaba, frequentemente, descobrindo isso. É quase como se cada pessoa tivesse uma idade cronológica, contada a partir da data de seu nascimento, e uma idade psicológica, a qual marca os momentos especiais em que percebe ter se tornado mais capaz de lidar consigo mesma e com o mundo.

A dúvida faz parte da vida, nos ajuda a pensar. Uma das coisas mais importantes, acredito, é aprender a não ignorar a dúvida, reconhecendo-a e, então, permitir-se pensar a respeito. Quem faz escolhas de forma apressada demais ou, nas palavras de Von Franz, age de “modo irrefletido”, pode acabar enfiando os ‘pés pelas mãos.

A vida está em permanente construção, e uma das coisas que se encontra ao nosso alcance é se engajar conscientemente neste processo, na medida do possível. À essa altura talvez você esteja pensando “ah, mas falar é mais fácil do que fazer” … Sim, construir a vida, dia após dia, exige muito esforço, mas ninguém deveria ter que passar por isso sem apoio, tanto de seus próximos como do Estado, ao qual cabe, dentre outros, a efetivação de Políticas Públicas e dos direitos humanos. O apoio é fundamental, basta vermos o quanto ele tem sido importante nesse momento de pandemia do COVID – 19. Tomara que, após o COVID, as redes de apoio e solidariedade que foram construídas sem mantenham.


[1] JUNG, Carl Gustav. (Org.). O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

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Psicólogo (CRP 20/4130)

pela Universidade Federal de Rondônia

Mestre em Psicologia

pela mesma universidade

Em curso de formação de analista junguiano

pela SBPA Brasil

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